"O que escrevo é mais do que invenção, é minha obrigação contar sobre essa moça entre milhares delas. E dever meu, nem que seja de pouca arte, o de revelar-lhe a vida.
Porque há direito ao grito."
"Devo registrar aqui uma alegria. É que a moça num aflitivo domingo sem farofa teve uma inesperada felicidade que era inexplicável: no cais do porto viu um arco-íris. Experimentando o leve êxtase, ambicionou logo outro: queria ver, como uma vez em Maceió, espocarem mudos fogos de artifício. Ela quis mais porque é mesmo uma verdade que quando se dá a mão, essa gentinha quer todo o resto, o zé-povinho sonha com fome de tudo. E quer mas sem direito algum, pois não é?"
- A Hora da Estrela de Clarice Lispector, páginas 13 e 35
O narrador d'A Hora da Estrela, Rodrigo, diz por obrigação que a pobre nordestina Macabéa tem direito de ser escutada, juntamente com as outras milhares de pobres nordestinas que se encontram em situações idênticas. Porém, ao falar com o leitor e se perder em seus pensamentos verdadeiros, ele revela que de fato ela não tem direito nenhum. Rodrigo é preso entre sua obrigação de sentir e ajudar de um lado e seus preconceitos e desgostos do outro lado. Vemos que ele vê a pobre nordestina e sua classe como pessoas inferiores, usando até o diminutivo para descrevê-la. Ele tem nojo das pequenas alegrias da classe pobre; nem para ver um arco-íris ele dá direito. Por meio deste crítico humilhante, vemos que o único obstáculo que impede o autor de alcançar seu propósito de dá direito ao grito a Macabéa é ele mesmo. Ele só poderá realizar seu objetivo se conseguir sobrepujar seu próprio eu.
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